Provocado pelo Corpo Elétrico*

Por Paulo Vidal

O filme Corpo Elétrico, dirigido por Marcelo Caetano, faz passar uma corrente elétrica entre membros de conjuntos aparentemente separados – a fábrica de tecidos, o movimento LGBT –  provocando interseções inesperadas entre eles, embora não impossíveis. Para quem foi mordido pela psicanálise, é impossível não ser interrogado pelo experimento de criação de mundos encetado por esse filme extremamente atual e político: pegue uma multiplicidade de corpos, marcados cada um deles por diversos traços identificatórios (operário, gay, negro, imigrante, hétero, drag, evangélico), retire os tabiques e hierarquias que os segregam, fazendo com que os corpos se movam, se encontrem, se choquem.

É antológica a cena perto do final do filme, na qual o casal de evangélicos tem sua união sacramentada por uma drag queen, gays, operários… As roupas, os adereços dos noivos são inventivamente improvisados com o que se tem à mão: pedaços de tecido, flores, copos, numa bricolagem engraçadíssima. A cena mostra como as roupas de cada um de nós são tecidas a toda hora pelo corte e costura de pedaços de tecido que herdamos, tomamos emprestado, etc. Como diz o personagem Elias a Wellington quando recolhem restos num depósito da fábrica: “tudo é resto de tecido e coisa que não deu certo”.

Daí a importância de reconhecermos que, se temos algo em comum, é o fato de que somos todos bricoleurs, feitos de “coisa que não deu certo”, mas com a qual cada um de nós se vira, inventando, estilizando os possíveis. Basta que o sujeito abra a boca em análise para se dar conta que cada um de nós difere de si mesmo, é habitado por uma alteridade interna. Quando alguém considera que a sua roupa particular representa o modo de gozo ideal, o uniforme ao qual todos os outros gozos deveriam se conformar, essa alteridade interna suprimida em si retorna desde o outro, cujo modo de gozo passa a ser odiado porque sujo, danoso, etc. Numa palavra, é o racismo, a homofobia, etc.

Se o amor é a forma por excelência de nós, sujeitos à falta a ser, conquistarmos um ser, um personagem do filme diz para a moça que paquera: todos nós precisamos de um “complemento”, sejamos nós héteros ou gays. No filme, as parcerias amorosas são sempre abertas ao mundo, operando uma distinção entre particular e singular: o singular é o particular menos os muros. O que me faz colocar uma pergunta: como foi fazer esse filme, cujo elenco, composto por atores tão diversos, transmite tamanha alegria?

Em segundo lugar, um amigo marxista da velha guarda me diria que esse filme era “a classe operária vai ao paraíso”. De fato, parece-me que há uma paródia bíblica: o protagonista se chama Elias, personagem que, na bíblia, anuncia a chegada do Messias. No entanto, não há apelo à transcendência alguma, a outro mundo, seja o paraíso bíblico ou o socialismo; o filme é imanentista. Quanto à fábrica, é uma fábrica de tecidos, fábrica que funciona como paradigma em O Capital, de Marx. Entretanto, os trabalhadores parecem mais saídos da chamada “nova classe média”, aos quais o sociólogo Jessé Souza prefere denominar “batalhadores” (2012).

Logo que é admitido na fábrica, o personagem imigrante recebe as instruções de como usar o corpo para efetuar os movimentos que as máquinas da cadeia de produção exigem: precisos, monotonamente repetitivos, mortificantes. Num dos mais belos planos do filme, o personagem Elias é tomado pelo tédio, ou seja, pelo desejo de outra coisa, desejo que atravessa como um fio os personagens, embora sob nomes diversos: um quer casar, mas não dispõe de recursos; outro quer deixar a fábrica e atuar em shows.

Se emprego o termo “mundo”, é porque as lutas anticapitalistas tinham a ideia de que o trabalho constitui um mundo comum, um cadinho que nos permitiria projetar outro mundo possível, liberto dos grilhões do capital. Ora, o trabalho hoje deixou de fazer mundo comum e desapareceu a ideia escatológica de outro mundo, a qual operava numa distinção entre meios e fins: trabalhadores, sejam instrumentos do partido, vanguarda que vos orientará porque conhece de antemão os fins. Contudo, tampouco há que ficarmos lamentando pelo mundo imundo, a grande catástrofe. Muito pelo contrário! Uma multiplicidade de movimentos (negros, mulheres, loucos, LGBT, deficientes) cria mundos nesse mundo, oásis no deserto, abrindo assim a questão da compossibilidade dessas ações, dos trajetos a serem inventados entre os oásis (ARENDT, 2013). Daí a importância da arte no filme, como meio de criar mundos, mas como meio inseparável dos fins.

 

*Comentário apresentado no debate com o diretor do filme Corpo Elétrico, Marcelo Caetano, ocorrido após a exibição do filme em evento preparatório para as XXV Jornadas da EBP Rio e ICP-RJ, no dia 03/11/2017, no auditório Leme Lopes do IPUB.

 

Referências bibliográficas

ARENDT, H. O que é política? Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2013.

SOUZA, J. Os batalhadores. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.