Pólis de poli-amores

Por Clarisse Boechat

Parto aqui de uma proposição de Marie Hélène Brousse (2002, p. 57), que aponta o analista como um leitor privilegiado da cidade: “É por isso que eu digo que a posição do analista é central na pólis. É como um observatório, um desfile dos modos de gozo e de vida”. Se o analista não se subtrai de sua incidência na pólis, a especificidade de sua observação, que o difere de um sociólogo ou de um antropólogo, consiste em tomar o texto inconsciente como discurso do Outro e extrair cruzamentos significantes que produzem vida para um sujeito e sustentam a subjetividade de uma época.

E o Rio? Que leitura fazer da cidade que nos é contemporânea? Na minha experiência de trabalho com as ruas, seja pelo Consultório na Rua ou pelo ateliê “Escreve-se história”, tenho a impressão de me deparar frequentemente com certa labilidade dos laços que sucessivamente se engancham e desconectam do Outro, em soluções refeitas a cada vez. Isso parece se aproximar da intermitência do laço que se verifica nas psicoses ordinárias, como discutido nas Conversações sobre os “inclassificáveis da clínica psicanalítica”, em que se perfilam organizações sintomáticas que, por vezes, estabelecem ligações fluidas com o Outro. São sujeitos que prescindem das normas e da rotina como marcação significante, passam ao largo das convenções sociais, mas inventam, a cada vez, novos recursos, grampos que os conectam provisoriamente ao Outro, sem a estabilidade de um sintoma.

Um adolescente me disse: “Vou te mandar a letra: na rua a gente não namora, aqui é papo de marido e mulher”. Essa forma curiosa de nomear parcerias amorosas, muitas vezes fugazes, parece demonstrar como, ao prescindir das coordenadas do Nome-do-pai, ainda assim, alguns sujeitos se servem dos semblantes da norma, à sua maneira. A nomeação dos laços que recorre ao “lastro” da família se apresenta não apenas em relação às parcerias amorosas, mas também nas mulheres e homens nomeados como “mães” e “pais” na rua. Mesmo que as bricolagens desses poli-amores ou “neoparentalidades” se enodem e des(enodem) na pulsação da intermitência, não deixam de ser modalidades de amarração como recurso à deriva, ficções sem fixidez. Estaria em jogo aí um apelo aos semblantes como efeito do declínio da norma fálica? As ruas da cidade são labirintos por onde o extravio do gozo circula, mas também se enlaça em arranjos muito singulares, e a presença da psicanálise testemunha, dessas novas derivas, impasses e invenções na cidade do nosso tempo, pólis de poli-amores.

 

Referências:

BROUSSE, M-H. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2002.

MILLER, J-A. Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica: A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.